1. Investigando a posição do sujeito cego na história.
Desde a antiguidade, a cegueira vem sendo considerada como algo de
difícil compreensão. As pessoas cegas, segundo Lorimer (2000), foram
sempre consideradas como incapazes e dependentes, maltratadas e
negligenciadas, sendo que algumas civilizações chegavam mesmo a
eliminá-las. Somente há 200 anos atrás é que a sociedade começou a
perceber que as pessoas cegas e com baixa visão poderiam ser educadas e
viver independentemente. Este percurso histórico e a forma como a
cegueira era considerada e tratada em diversas regiões do mundo, o que
será apresentado abaixo, ajudam-nos a compreender as razões pelas quais a
sociedade, em geral, ainda associa algumas profissões, mitos e idéias
pré-concebidas às pessoas cegas.
Na China, a cegueira era comum entre os moradores do deserto. A
música era uma alternativa para se ganhar a vida e, para isto, os cegos
precisavam exercitar o ouvido e a memória. Os japoneses, desde os tempos
mais remotos, desenvolveram uma atitude mais positiva com relação às
necessidades das pessoas cegas, enfatizando a independência e a
auto-ajuda. Além da música, poesia e religião, o trabalho com massagem
foi encorajado. Muitos cegos se transformaram em contadores de história e
historiadores, gravando na memória os anais do império, os feitos dos
grandes homens e das famílias tradicionais, sendo encarregados de contar
isto para outras pessoas, perpetuando, assim, a tradição.
O Egito era conhecido na antiguidade como o país dos cegos, tal a
incidência da cegueira, devido ao clima quente e à poeira. Referências à
cegueira e às doenças nos olhos foram encontradas em papirus
e os médicos que cuidavam dos olhos se tornaram famosos na região
mediterrânea.
Na Grécia, algumas pessoas cegas eram veneradas como profetas,
porque o desenvolvimento dos outros sentidos era considerado como
miraculoso. Em Roma, alguns cegos se tornaram pessoas letradas,
advogados, músicos e poetas. Cícero, por exemplo, orador e escritor
romano, aprendeu Filosofia e Geometria com um tutor cego chamado
Diodotus. Entretanto, a grande maioria vivia na mais completa penúria,
recebendo alimentos e roupas como esmola. Os meninos se tornavam
escravos e as meninas prostitutas.
No Reino Unido, as primeiras referências às pessoas cegas datam do
século XII, e mencionam um refúgio para homens cegos, perto de Londres,
aberto por William Elsing. Os cegos eram
geralmente mendigos que viviam da caridade alheia.
Na Idade Média, mais atenção foi dada às pessoas pobres e com
deficiência, principalmente devido à lei - "The Poor Law
Act", lavrada em 1601, que mencionava, explicitamente, os
pobres, os incapazes e os cegos, prevendo abrigo e suporte para estas
pessoas. Desta data em diante e por mais uns duzentos anos, os cegos
viveram em suas casas ou em instituições, os chamados "asylums",
contando com algum suporte dos governantes.
Na Bíblia, a cegueira é sinônimo de escuridão, de pecado. Deus é
luz, é claridade. O pecado é a escuridão, a ausência de Deus. Segundo
Hull (2000), a Bíblia foi escrita por pessoas que enxergam e os textos
bíblicos traduzem imagens negativas da cegueira e da deficiência. A
cegueira é símbolo da ignorância, de pecado e falta de fé. Além disto, é
considerada como um castigo enviado por Deus.
A cura do cegos, na Bíblia, está sempre ligada à remissão dos
pecados, à confissão dos pecados. De uma certa forma, conforme comentado
por Barasch (2001), a Bíblia reflete o pensamento cultural da
antiguidade em relação à cegueira, tendo grande influência sobre
artistas e escritores da época e também colaborando para manter o
círculo vicioso do preconceito.
Em suma, a história, as lendas, a literatura e a própria Bíblia
contribuíram para perpetuar as idéias negativas, os mitos sobre o efeito
da falta da visão na vida das pessoas. A falta de conhecimento e
entendimento sobre o tema, segundo Hutchinson et al (1997), acaba
resultando em uma limitação das oportunidades que são oferecidas às
pessoas cegas e com baixa visão. A cegueira e a baixa visão não deveriam
ser barreiras para uma participação maior na sociedade e na escola.
Estas barreiras são, na grande maioria, construídas pela própria
sociedade, sendo traduzidas na linguagem utilizada para descrever as
pessoas com deficiência pela cultura da normalidade, que discuto a
seguir.
2. A linguagem do preconceito e os significados da cegueira.
Além da influência dos fatores históricos, já mencionados
anteriormente, a forma como a mídia usa os significados da deficiência e
mostra a figura do cego e das pessoas com deficiência, infiltra-se na
vida das pessoas, contribuindo para a construção dos sentidos negativos e
a manutenção do estigma, criando um círculo vicioso.
Com o objetivo de investigar os significados e referências à
cegueira, Hull (2001) fez uma busca em um conceituado jornal britânico, The Guardian, cuja linha editorial se preocupa com
justiça social e educação. Hull coletou 750 usos da palavra,
classificando-os quanto ao significado literal e metafórico. O que mais
chamou a sua atenção foi o uso metafórico, carregado de um significado
extremamente negativo, que relacionava a cegueira à ignorância, à
indiferença, à falta de sensibilidade, à falta de inteligência crítica e
à violência. Os poucos usos metafóricos que não foram negativos se
referiam ao amor e à justiça.
Hull comenta que, mesmo sendo a cultura britânica tão preocupada com
o uso discriminatório das palavras, evitando aquelas que possam
traduzir preconceito, o mesmo cuidado não foi verificado com relação à
cegueira.
As imagens negativas, não somente na língua inglesa, vão se
infiltrando na vida, atitudes e linguagem, colaborando para manter o
estigma e a discriminação com relação à deficiência. Os discursos
carregam e perpetuam essa posição negativa, vetando ao cego e às pessoas
com outras deficiências o direito à participação plena na sociedade.
Também no cinema e na televisão, a figura da pessoa com deficiência
está, geralmente, ligada a alguma figura monstruosa em filmes de
suspense ou terror, ao humor grotesco, à amargura e desesperança em
dramas. A deficiência é, assim, retratada com um teor melodramático e,
segundo Longmore (2003), nos filmes de terror e
suspense, onde fazem o papel de monstros, o texto que está implícito
traduz o medo e a aversão pelas pessoas com deficiência.
Estes personagens, geralmente, aparecem com alguma deformidade
física e, nas caracterizações de criminosos, também com uma deformidade
da alma. Estas imagens refletem o que Goffman (1988) descreve como a
essência do estigma: a pessoa que é estigmatizada é considerada,
de alguma forma, como desumana e exemplifica o efeito multiplicador e
devastador do preconceito.
Nesse caso, os vilões com deficiência destilam o seu ódio e o rancor
pelo seu destino cruel e despejam sua ira naqueles que escaparam desta
sina, numa retaliação à normalidade. O exposto acima reflete e reforça
três preconceitos muito comuns: a deficiência como uma punição para o
mal; as pessoas com deficiência são amargas devido ao seu destino; as
pessoas com deficiência sentem inveja das pessoas normais e querem
destruí-las. A história, entretanto, revela uma realidade diferente em
que as pessoas é que foram, durante muito tempo e, de uma certa forma,
até hoje, os algozes das pessoas com deficiência.
Além do vilão e do monstro, as pessoas com deficiência também
começaram a aparecer na televisão e no cinema, principalmente nos anos
70 e 80, como pessoas desajustadas, que não se conformam com a
deficiência imposta devido a algum acidente ou à guerra. A culpa de seus
males está sempre neles próprios e não no ambiente restritivo da
sociedade e na atitude preconceituosa das pessoas. Estes dramas ignoram
ou distorcem as possibilidades de inclusão social e uso da moderna
tecnologia assistiva, apresentando a morte como uma das únicas soluções
possíveis para tanto sofrimento.
Ultimamente, a televisão, jornais e revistas, têm mostrado pessoas
com deficiência que "superaram" sua deficiência, tornando-se
profissionais bem sucedidos ou pessoas ativas em busca de seus objetivos
pessoais e profissionais. Estas histórias são a antítese dos
criminosos, dos monstros e das pessoas desajustadas mostradas nos
filmes, mas ainda assim, traduzem uma visão distorcida da deficiência,
considerando-a como um problema emocional de aceitação pessoal. O
sucesso ou fracasso de uma pessoa com deficiência estaria ligado muito
mais a fatores individuais, como coragem, determinação e equilíbrio
emocional, deixando de levar em consideração o estigma, a discriminação,
a limitação e falta de oportunidades impostos pela sociedade.
As questões discutidas, as quais incluem o conhecimento sobre a
cegueira, as raízes históricas da deficiência e a linguagem do
preconceito, me possibilitaram entender os sentidos que eu, professora e
pesquisadora, atribuía e atribuo à cegueira, para entender a
constituição do sujeito cego e com baixa visão e para analisar os
sistemas de atividade, nos quais participam, dentre eles a sala de aula.
Além disso, permitiram que eu pudesse entender melhor as possíveis
barreiras para a inclusão escolar e social.
Lívia Maria Villela de Mello Motta, é doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem e atua na área
de formação de professores para a escola inclusiva em cursos de
graduação e pós-graduação na PUC Cogeae.
Trabalha também com a inclusão cultural das pessoas com deficiência
visual com foco na audiodescrição, ministrando cursos naFaculdade de
Belas Artes de SP.
Postado por Aurea Cristina Barros Xavier.